O Vazio na Mala - Premiado espetáculo retorna aos palcos de São Paulo

Foto - João Caldas

Entre ficção e realidade, peça revela os 
segredos de uma família sobrevivente da Segunda Guerra Mundial

A obra mescla fatos históricos a uma narrativa ficcional para reconstruir a jornada de uma família que, fugindo das perseguições nazistas, deixou a Alemanha rumo à China. Após enfrentar os desafios da ocupação japonesa em Xangai, em 1941, a família migrou para o Brasil, onde recomeçou sua vida. O Vazio na Mala fez sua temporada de estreia no Teatro do Sesi-SP, ganhou os Prêmios Bibi Ferreira, APCA, Cenym, foi indicado ao Prêmio Shell, e agora integra a programação do Teatro Moise Safra, em São Paulo.

Idealizado pela atriz Dinah Feldman, que também está no elenco, a peça tem texto de Nanna de Castro e direção de Kiko Marques. Com Noemi Marinho, Marcelo Varzea e Fábio Herford no elenco, completará a marca de 100 apresentações nessa nova temporada.

Inspirada e provocada pelas marcas deixadas pela perseguição nazista, a dramaturgia inédita de O Vazio na Mala constrói uma ficção atual que desdobra temas universais e atemporais. A peça aborda como o silêncio permeia as relações familiares e sociais, ao mesmo tempo em que explora o poder do afeto na regeneração de feridas, muitas vezes de forma inesperada.

No espetáculo, o silêncio é elevado à condição de personagem principal, guardado e vigiado dentro de uma antiga mala. Este objeto, aparentemente banal, carrega os horrores de um passado que insiste em permanecer oculto. É na busca pelo vazio que habita essa mala que a história ganha vida e revela seus segredos.

O Vazio na Mala estreou em março de 2024 em São Paulo por meio do Edital SESI Artes Cênicas - Teatro do SESI-SP Inéditos, com grande êxito. Desde sua temporada de estreia, alcançou um público de mais de 40 mil pessoas. Venceu o Prêmio Bibi Ferreira nas categorias Melhor Dramaturgia Original, Melhor Atriz (Noemi Marinho) e Melhor Peça de Teatro; o Prêmio APCA, na categoria Dramaturgia, para Nanna de Castro e Prêmio CENYM nas categorias Melhor Qualidade Artística e Melhor Cenário. Além da indicação ao Prêmio Shell de Melhor Atriz para Noemi Marinho.

Idealização e texto

Foto - João Caldas

A atriz Dinah Feldman idealizou o espetáculo ao tomar conhecimento, por meio do depoimento em vídeo do primo William Jedwab, dos fatos ocorridos com pais e avós dele. De valor narrativo, os dados fornecidos na gravação e uma mala de couro surrada vinda da Segunda Guerra (contendo documentos em alemão e chinês), trazida pelos parentes, contam a trajetória e o drama dos Jedwab. Hoje são documentos preservados e guardados no Museu Judaico de São Paulo. À saga da família, junta-se a ficção em torno da curiosidade sobre o conteúdo de uma velha mala de couro.

A ideia de montar a peça nasceu paralelamente ao trabalho de Dinah no núcleo Educação e Participação do Museu Judaico de São Paulo, quando conviveu por um ano com a mala, exposta no local depois de doada pelo primo. Nas visitas guiadas, a atriz contava a história do objeto. “Falando da mala, fui desenvolvendo o projeto do espetáculo”, diz, informando que ela e o primo logo escolheram Nanna de Castro para escrever o texto, que teve a obra reconhecida nos prêmios Bibi Ferreira, APCA e CENYM.

Sobre a montagem

Foto - João Caldas

A encenação de Kiko Marques é centrada nas atuações, no poder das palavras, na qualidade ao mesmo tempo particular e pública daquilo que está sendo contado e também na comunhão desses fatores com o cenário, figurinos, luz, som e projeções. “Contamos uma história criada a partir de um fato, e que trazemos ao espectador na forma de uma visita aos protagonistas dessa história, um encontro com suas vidas particulares e seus dramas mais íntimos”.

Kiko leva o espectador a ser testemunha e cúmplice dessas vidas e suas trajetórias. “Pra isso, os apresentamos à intimidade das personagens, às suas casas, aos quartos de sua infância, seus hábitos, suas roupas.” Ao mesmo tempo, a proposta é centrada na perspectiva ampla dessa história que nasce no holocausto, da fuga de uma mulher judia à perseguição nazista durante a segunda guerra mundial, história de uma sobrevivente ao projeto nazista de extermínio em massa de seres humanos.

“Em cena temos as casas de Esther e Franz, mãe sobrevivente e filho já morto, que aparece na forma de espectro/memória; Sami, neto de Esther e filho de Franz, que chega para visitar ao mesmo tempo a avó e suas memórias de infância; e uma mala fechada onde Esther pretendeu aprisionar sua história, como sua memória que se esvai. Também temos um céu de malas por sobre nosso mundo e nossa mala particular. Um céu de histórias iguais às dela. Temos as duas casas, espelhadas, onde a ação acontece, e que se separam à medida que as memórias se encarnam e o vazio se instaura; temos a segunda guerra e a perseguição que são projetadas nas paredes dessas casas, como balas e bombas a corroer não mais a matéria presente, mas a perspectiva do futuro”.

Sobre o texto

Foto - João Caldas

Nanna de Castro foi uma das pessoas entrevistadas por Dinah e William quando selecionavam quem escreveria o texto. Da história ouvida por ela, o ponto considerado marcante da trama, “o que tocou minha alma” - foi a relação entre pai e filho. De forma intuitiva e emocional, a autora logo imaginou o resgate dessa relação danificada. “Propus o caminho e William topou”, conta, lembrando do frio na barriga ao imaginar “andar pela história de uma família, pelos meandros afetivos das relações”.

Para escrever o texto, Nanna baseou-se também em entrevistas que fez com pessoas da família de William - a irmã, os amigos do pai e uma tia. “Aprofundei-me em pesquisas no Museu Judaico, estudei histórias similares e li alguns livros, entre eles A Garota Alemã, de Armando Lucas Correa; Maus, a História de um Sobrevivente, de Art Spiegelman, e Ten Green Bottles, de Vivian Kaplan”, conta, observando que a peça tem um lugar quase de uma constelação familiar. “De alguma forma, o teatro tem o poder de revisitar a ligação de pai e filho e trazer para um lugar mais saudável”, finaliza.

Sobre a cenografia

Foto - Karim Kahn

A velha mala de couro - com os segredos e as memórias de uma história de vida - foi o objeto que inspirou e norteou a cenografia de Márcio Medina. Para reproduzir o passado de duas gerações - o quarto de Esther (Noemi Marinho) e do seu filho Franz (Fábio Herford) - o cenógrafo concebeu dois quadrantes espelhados com objetos e mobiliário. O fundo do palco abriga um grande telão de papel - como uma antiga carta -, emoldurado com palavras e fragmentos de frases em hebraico, chinês etc.

Medina explica que as peças retratam o que resta de memória no cérebro e na alma de Esther e servem de superfície para inúmeras projeções de lembranças e fatos passados. O espaço cênico permanece preenchido até o final, como se guardasse consigo todas as marcas e fragmentos da vida que insiste em não se apagar.

Várias malas ocupam todo o espaço aéreo do palco. “Iluminadas, revelam em seu conteúdo imagens de vários grupos perseguidos pelos nazistas na segunda guerra”, explica. “Uma mala pode transportar uma história de sobrevivência, resguardada e reduzida por um apagamento de memória da personagem Esther, de 92 anos. São histórias, objetos e documentos consumidos pela luta e manutenção de uma família”, finaliza Márcio.

Sobre o figurino

Foto - Karim Kahn

O figurinista João Pimenta inverteu seu processo de trabalho na construção do figurino dos personagens. Depois de receber o briefing do diretor Kiko Marques, solicitando “uma roupa casual, do cotidiano”, o criativo logo partiu para a criação das peças. Pelo que absorveu, começou a desenvolver as roupas antes mesmo de ter o texto finalizado e de saber o perfil, as características dos personagens - quem era essa família - mãe, pai, cuidadora e filho.

“Minha proposta com o Kiko foi fazer este caminho inverso - criar o figurino e depois encaixá-lo na necessidade do espetáculo. A gente costuma dizer que na moda a roupa é a segunda pele e que no figurino ela é a primeira pele, a casca do personagem”. Pimenta considera positivo o processo pois permite que o elenco ensaie com as roupas desde o começo e não em uma etapa mais adiante. “Assim, o ator já pode sentir o personagem. E a ideia agora é ir ajustando até finalizar”.

Uma única cor foi concebida para todas as peças - o cinza e suas várias tonalidades. No design, a proposta de mesclar referências de várias não define tempo nenhum. Todas as roupas foram confeccionadas em tecido de alfaiataria, como risca de giz, lã fria, cinza mescla. Para dar a ideia de uma roupa com história, o figurino passou por um tratamento de envelhecimento, menos na roupa do filho.

Um vestido em tecido de gola fechada transmite a austeridade demandada pela personagem Esther. Desgastado, o figurino do pai - “uma roupa de ficar em casa” - é formado por camiseta regata, roupão e chinelo. Já o do filho jornalista, em camisa e calça social, é mais elegante e atual. A cuidadora Ruth, por sua vez, é a única que traz a cor: começa vestida de branco, passa pelo rosa e termina no cinza, aproximando-se da paleta dos demais personagens. Essa transição reforça seu papel simbólico e a delicada passagem entre presença e apagamento.

Sobre a trilha sonora

Foto - João Caldas

O universo da música judaica e suas variadas matizes foram o foco da pesquisa de Gregory Slivar, autor da trilha sonora. “Com a ajuda de Dinah Feldman, entrevistamos pessoas ligadas à música deste contexto cultural, como músicos de Klezmer, cantores e pesquisadores, bem como assistimos a reuniões em sinagogas. Para além dessas pesquisas, ainda experimentei como me apropriar deste material a fim de poder colaborar com a história da peça”, contou Gregory.

Uma vez imerso neste universo, Greg usou-o como inspiração para suas composições. “As músicas aparecem como traços de memória e ligações entre os recortes de espaço e tempo da peça.” Slivar explicou que as vozes foram um elemento sonoro de lembrança e, remetendo aos conjuntos tradicionais, uma base instrumental foi usada para realizar a costura das cenas. “Pensei na trilha como este caminho entre o subjetivo destas personagens, suas buscas de um lugar de pertencimento, a fuga dos traumas e seus ritos de cura”.

Sinopse

Foto - João Caldas

Samuel (Marcelo Varzea), renomado jornalista de guerra, retorna ao Brasil em 2005 para vender o apartamento dos pais, fechado desde a morte deles, há mais de 5 anos. Porém, ao mergulhar nas memórias familiares, ele se depara com conflitos e segredos. A avó, Esther (Noemi Marinho), guarda numa mala fechada os relatos e documentos da fuga da Alemanha nazista. Em meio a revelações sobre o passado violento de seu pai, Franz (Fabio Herford), a cuidadora Ruth (Dinah Feldman) surge como elo de afeto e uma força propulsora do encontro entre Samuel e Esther e das transformações necessárias a cada um. Baseada em eventos reais, O Vazio na Mala explora temas universais como família, ciclos e a busca por significado.

Confira abaixo trechos do espetáculo:


Ficha técnica
O Vazio na Mala
Direção Artística - Kiko Marques
Idealização e Coordenação Geral - Dinah Feldman
Texto - Nanna de Castro
Elenco - Dinah Feldman, Fábio Herford, Marcelo Varzea e Noemi Marinho
Música e Concepção Sonora - Gregory Slivar
Técnicos e Operadores de Som - Anselmo Silva e Edézio Aragão
Desenho de Luz - Wagner Pinto
Assistente de Iluminação - Gabriel Greghi
Cenografia - Márcio Medina
Figurino - João Pimenta
Visagismo - Louise Helène e André Mateus
Videomapping - Um Cafofo
Técnico e Operador de Vídeo - Allysson Lemes
Camareira - Angela Lima
Cenotécnicos - Sasso Campanaro e Guilherme Felipe
Programador Visual - Murilo Thaveira
Programa - Débora Barmak
Fotos - João Caldas
Direção de Produção - Marcela Horta
Produção Original SESI-SP
Apoio Cultural - Cabelaria e MUJ - Museu Judaico de São Paulo
Patrocínio - Skinlaser e SKaminsky
Realização - Culturas em Movimento

Serviço
O Vazio na Mala
Temporada - de 10 a 18 de outubro
Horário - sexta e sábado, às 20h, domingo, às 19h
Sessão extra - dia 18 de outubro - sábado
Horário - 17h
Duração - 90 minutos
Local - Teatro Moise Safra (Colégio Renascença)
Endereço - Rua Professor Walter Lerner, 315 (antiga Rua Inhaúma) - Barra Funda - São Paulo
Capacidade - 420 lugares
Ingressos - R$ 120,00 (inteira) e R$ 60,00 (meia)
As vendas de ingressos são realizadas por meio da plataforma Sympla (clique aqui)
Classificação - 14 anos

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