A chegada de uma criança transforma a vida de quem cuida dela. Enquanto as mães, quase sempre, se dedicam integralmente, muitos pais ainda participam pouco. A paternidade precisa ser tão natural para os homens quanto a maternidade é para as mulheres. Se a sociedade evoluiu com as mães como pilares da criação, imagine o impacto de um real engajamento paterno.
No Brasil, sete em cada dez mulheres são mães, e quatro em cada dez criam os filhos sozinhas. Isso representa 11 milhões de mães solo, das quais 90% são negras. Além disso, 72,4% vivem apenas com os filhos, sem uma rede de apoio próxima, e 12% apresentam sinais graves de esgotamento mental (IBRE/FGV).
A sobrecarga começa desde os primeiros dias de vida do bebê. O aleitamento materno, recomendado pelo Ministério da Saúde até os dois anos ou mais, equivale a uma jornada de 1800 horas por ano, exigindo cerca de 500 calorias diárias da mãe, além da privação de sono e da exaustão física. Apesar disso, a licença-maternidade dura apenas quatro meses, e as pausas para amamentação no trabalho são insuficientes para atender às necessidades do bebê e da mãe.
Além das dificuldades físicas e emocionais, há também o impacto profissional. Muitas mulheres enfrentam preconceito e até demissão ao retornar ao mercado: 50% das mães perdem seus empregos até dois anos após a licença-maternidade, segundo a FGV. Enquanto isso, 80% das mães relatam exaustão ao equilibrar filhos, casa e trabalho - entre os pais, esse índice cai para 48%.
Burnout materno
O esgotamento das mães brasileiras atingiu um nível alarmante. Nove a cada dez já sofreram burnout materno, e entre as que trabalham fora, 68% são afetadas pela Síndrome de Burnout. As mães de crianças com deficiência física, intelectual, TEA, TDAH e outras neurodivergências estão entre as mais impactadas, sofrendo altos índices de ansiedade, depressão, sobrecarga e exclusão social, segundo a pesquisa Kiddle Pass/B2Mamy. O Projeto de Lei nº 2774/2022 propõe a redução da jornada de trabalho em 50% para mães de crianças com Síndrome de Down, evidenciando a necessidade de políticas públicas para aliviar essa sobrecarga.
A vulnerabilidade emocional e mental das mães está diretamente ligada às condições socioeconômicas. Segundo o PNUD, entre 2018 e 2021, uma em cada quatro mães em situação de vulnerabilidade socioeconômica apresentou sintomas depressivos no primeiro ou segundo ano pós-parto - ou em ambos. O Instituto Baresi (2012) aponta que 78% dos pais abandonam as mães de crianças com deficiência ou doenças raras até os filhos completarem cinco anos de idade, agravando ainda mais essa sobrecarga.
Nos últimos 10 anos, o número de mães solo aumentou 18%, sendo 90% delas negras. A feminização da pobreza é um fenômeno global, e no Brasil, essa desigualdade é evidente: 62,8% das pessoas que vivem em domicílios chefiados por mulheres sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos estão abaixo da linha da pobreza (IBGE). Além disso, 45% das mães solo trabalham no mercado informal, enfrentando condições precárias de rendimento e bem-estar financeiro.
Quanto maior a vulnerabilidade socioeconômica, maior a vulnerabilidade emocional e mental dessas mães. Enquanto o cuidado permanecer desigualmente distribuído, a sobrecarga continuará recaindo sobre as mulheres, perpetuando um ciclo de exaustão, pobreza e invisibilidade. A solução passa pelo reconhecimento, pela valorização do trabalho de cuidado e pelo compartilhamento real dessa responsabilidade entre homens, mulheres e toda a sociedade.
A psicanalista Vera Iaconelli propõe uma discussão interessante ao refletir sobre o instinto materno enquanto um mito: “atribuir só aos pais a responsabilidade e o crédito de criar a próxima geração reforça a ideia mercadológica e meritocrática de que o cumprimento de expectativas é fruto de decisões privadas e não de condições sociais. Se a política de responsabilizar as mulheres pelo cuidado das próximas gerações já era insustentável no passado, agora tende ao colapso. O filho muitas vezes “se revela um fardo por competir com o trabalho, o tempo, a vida pessoal, as finanças e a vida conjugal”.
Segundo pesquisa da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, 37% das brasileiras não desejam ter filhos. Iaconelli ressalta que esta divisão da reprodução ainda é usada para subalternizar a mulher na esfera privada e pública. Cuidar da próxima geração, diz Iaconelli, passa por cuidar das mulheres/mães num primeiro momento, mas passa sobretudo pela responsabilização da sociedade como um todo.
Nos braços dela
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Foto - Divulgação |
Diante desse cenário de sobrecarga materna e desigualdade na distribuição do cuidado, a HQ Nos braços dela, surge como um potente retrato das experiências reais de mulheres que sustentam, muitas vezes sozinhas, o trabalho de cuidado. A obra explora não apenas a maternidade - incluindo a maternidade atípica -, mas também o cuidado com idosos, doentes e o impacto dessa responsabilidade em profissões historicamente femininas, como a enfermagem, a educação e o trabalho doméstico.
As histórias revelam sentimentos comuns a milhões de mulheres brasileiras: exaustão, desamparo e invisibilidade. Ao dar voz a essas vivências, Nos braços dela contribui para um debate urgente sobre a economia do cuidado, a desvalorização desse trabalho essencial e a necessidade de uma divisão mais justa da responsabilidade entre indivíduos, famílias, empresas e o Estado.
Sobre as autoras
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Foto - Flávia Altenfelder |
Tatiana Achcar é jornalista, escritora e ativista pelos direitos das pessoas com deficiência e pelos direitos das mulheres. Em sua trajetória profissional, foi repórter de grandes redações cobrindo pautas de educação e sociobiodiversidade. Escreveu e produziu o livro-reportagem Vida Caiçara (Editora ABooks, 2008).
Ficha técnica
Nos braços dela
Autoras - Bárbara Ipê e Tatiana Achcar
Editora - NADA Studio Criativo
Páginas - 114
Preço - R$ 70,00
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